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As nossas crianças digitais

Um texto de Bruno Horta publicado a propósito do Ciclo Direitos das Crianças
Criança, de rosto desfocado, deitada num sofá com um tablet apoiado nos joelhos.

O título da reportagem era à americana, como só eles sabem fazer: “As amas de Silicon Valley comportam-se como polícias de ecrãs”. Na terra da digitalização, naquele vale californiano em que se concentram os gigantes das tecnologias que trazemos todos os dias no bolso, os pais andavam obcecados em afastar os filhos dos ecrãs, convencidos de que a mais cândida experiência com um telemóvel ou computador poderia viciar os seus rebentos, contava em 2018 o diário The New York Times.

 

Falaram com uma ama a quem progenitores faziam constantemente uma exigência: que os miúdos não tivessem qualquer experiência tecnológica — zero. Várias agências de babysitters garantiram na ocasião que os pais de Silicon Valley — agarrados aos ecrãs o dia inteiro, a ponto de não ligarem nenhuma aos filhos — exigiam cláusulas contratuais de tolerância zero quanto ao uso de telemóveis. Assim mesmo, com o exagero próprias das modas acabadas de chegar.

 

Ora, se em 2018 aqueles que trabalhavam com tecnologia tinham medo dos retângulos luminosos, alguma coisa se passaria… E passava mesmo. Cinco anos volvidos, com uma pandemia pelo meio que só ajudou a acelerar a digitalização da vida em sociedade, ganhou foros de debate público o perigo dos excessos digitais — sobretudo para as crianças.

 

Continuemos nos EUA a ouvir alarmes que soam com estrondo. Em meados deste ano, um médico militar disse que o uso de redes sociais representa um risco para a saúde mental e para o bem-estar de crianças e adolescentes. Vivek Murthy, de 46 anos, é o principal porta-voz de sucessivos presidentes americanos para assuntos de saúde pública. Veio avisar que as redes sociais podem ser altamente prejudiciais, além, claro, de terem benefícios que ninguém nega.

 

Vale a pena citar o médico: os adolescentes “não são meros adultos em ponto pequeno”, pois “estão numa fase decisiva do desenvolvimento cerebral”. As famílias devem, por isso, evitar dispositivos eletrónicos à hora das refeições e privilegiar o diálogo em presença, sem mediação digital. Por sua vez, as empresas tecnológicas são instadas a criar configurações que impeçam os mais jovens de aceder a certos produtos ou plataformas.

 

Quer isto dizer que já não é só em Silicon Valley que a preocupação existe. Ela está hoje por toda a América e por maioria de razão no Ocidente (se não noutras partes do mundo). Por isso, quando ouvimos falar da atual estratégia da Comissão Europeia para tornar a internet mais amiga das crianças — o que assenta em “experiências digitais seguras”, “empoderamento digital” e “participação ativa” — somos levados a pensar que só terá bom êxito se for acompanhada, à partida, de uma nova atitude na maneira como expomos os menores à tecnologia.

 

Pede-se que tenham direito a entender o mundo com a tecnologia e não apenas na tecnologia.

 

Claro que não é aceitável privar as novas gerações dos jogos e da magnífica descoberta do conhecimento através do ecrã, das brincadeiras digitais e das inúmeras possibilidades de futuro que a grande rede sempre permite. Mas será consensual que os miúdos tenham de ganhar a maturidade necessária para serem utilizadores esclarecidos e autónomos de tecnologias altamente sofisticadas com aparência tão inocente — mais ainda com a recente explosão da inteligência artificial. Pede-se que tenham direito a entender o mundo com a tecnologia e não apenas na tecnologia.

 

Vem isto a propósito dos direitos culturais das crianças (ou serão direitos culturais para as crianças?). Tornou-se quase impossível desligar da dimensão virtual quaisquer quesitos sobre direitos humanos. Se queremos um pensamento de futuro, temos de o conjugar com a realidade que já se apresenta aos nossos olhos: uma realidade mediada por dispositivos eletrónicos — ainda passível de ser assim descrita pelos que hoje são adultos, mas porventura apenas a realidade, simplesmente isso, para os que nasceram ontem e para os que vão nascer já amanhã.

 

No emaranhado de direitos culturais (e já iremos à definição), a maneira como se usa os ecrãs será pedra-de-toque. Ou imaginamos as crianças a fruírem das artes e da expressão artística sem a respetiva componente digital?

 

Temos e continuaremos a ter espetáculos ditos tradicionais, de carne e osso, nesse misterioso mundo que é uma sala de teatro ou de cinema. E haveremos de ter sempre os concertos em sala fechada e em espaços abertos, mais as atividades lúdicas num atelier e num jardim. Ou ainda os livros folha à folha, mais o museu de pedra e cal com pinturas de tela e tinta. E com tudo isto que herdámos dos outros séculos temos também o ecrã — ou um qualquer novo dispositivo que esteja por inventar — a servir de intermediário e amplificador de experiências, porta aberta de descoberta e perigo.

 

A Convenção Sobre os Direitos da Criança — adotada em 1989 pela Assembleia Geral das Nações Unidas e ratificada por Portugal em 1990 — reconhece, entre outros aspetos, que todas as crianças têm o direito de crescer num ambiente feliz e saudável, de desenvolver as suas potencialidades com proteção e carinho e de brincar e participar em atividades culturais e artísticas.

 

Já toda a gente testemunhou uma cena destas — e agora já não estamos a falar apenas da América. Aqueles pais eventualmente bem-intencionados que põem um tablet à frente dos filhos à hora das refeições, esperando que eles se mantenham entretidos e sossegados. Na verdade, também esses pais estão ao mesmo tempo colados aos seus telemóveis, privando os filhos do tempo de qualidade em família a que têm direito.

 

Também já ouvimos pediatras dizer que a interação cara a cara entre adultos e crianças é fundamental para que estas tenham um desenvolvimento cognitivo, linguístico e emocional equilibrado, pelo que um artefacto luminoso como único horizonte durante várias horas por dia estará a impedir os mais pequenos de abrirem os olhos para o mundo palpável que as rodeia. Não será aquela uma maneira de os amputar de relações sociais e de um inteligir mais subtil, feito de imaginação e intuição?

 

O assunto confronta-nos com uma persistente desigualdade de oportunidades e de acesso. Porque no cumprir dos direitos culturais das crianças parece óbvio que as menos cuidadas (há quem prefira dizer “vulneráveis”) têm maiores dificuldades em ir além da realidade retangular — a realidade dos ecrãs renegados em Silicon Valley.

 

Vemos e sabemos que em famílias com fraca autonomia económica ou naquelas em que os adultos estão demasiado absorvidos, o caminho mais fácil para oferecer alguma atividade cultural às crianças é muitas vezes apenas a experiência digital — a fruição do ecrã. Pais e encarregados de educação eventualmente menos esclarecidos, ou então sem tempo, procuram suprir as necessidades culturais das crianças através do telemóvel e do tablet. Dão-lhes as séries interativas com narrativas de rebotalho e uma suposta liberdade de escolha no desenlace, jogos coloridos onde se cumpre um viciante objetivo sem nexo, vídeos curtos de hipnótica e interminável sequência.

E acrescente-se o caso das crianças com necessidades especiais, ainda mais prejudicadas neste consumo passivo de entretenimento que veste as vestes de fruição cultural (claro que é legítimo o papel de todas as indústrias culturais, ainda que nem todos os seus produtos sejam úteis ou benéficos a todo o tempo).

 

O direito dos mais pequenos a exprimirem-se artisticamente e o direito de acesso à criação e às práticas artísticas.

 

Numa busca rápida pela internet — como não! — surgem várias definições de “direitos culturais”. Em países com forte presença de minorias ou de comunidades indígenas, o conceito tem em conta o respeito por elementos culturais de origem, desde que isso não entre em conflito com outras garantias. Nestes casos, a lei salvaguarda o direito pleno a tradições linguísticas ou religiosas, numa razoável demonstração de respeito pela identidade e pelas raízes de cada criança.

 

O que já não aparece tão bem definido em documentos oficiais e tratados internacionais é uma outra dimensão dos “direitos culturais”, que aqui nos interessaria expor. O direito dos mais pequenos a exprimirem-se artisticamente e o direito de acesso à criação e às práticas artísticas instituídas: artes performativas, artes visuais, literatura, cinema, etc. Se essa criação instituída é a mais adequada, se precisamos de envolver as crianças no pensamento artístico e na produção artística, por serem elas as destinatárias, é todo um outro debate que importa continuar a fazer, mas que ultrapassa o âmbito desta prosa.

 

Crianças são todos os seres humanos com menos de 18 anos, estabelece a Convenção Sobre os Direitos da Criança, onde também se lê que o Estado “tem obrigação de proteger a criança contra todas as formas de discriminação e de tomar medidas positivas para promover os seus direitos”. Assim sendo, obrigatório se torna concluir que o papel dos pais e encarregados de educação em definir e defender os direitos culturais das crianças precisa de ser complementado pelas escolas, públicas ou privadas, pelas autarquias, pelos ministérios. Note-se, a propósito, que vigora no nosso país um Plano Nacional das Artes, decidido pelo Estado central, e que presta especial atenção à “participação, fruição e criação cultural” das crianças e dos jovens, através das escolas — cuja concretização caberá à comunidade educativa avaliar.

 

Outros atores podem estar presentes na definição e defesa dos direitos culturais das crianças. As crianças, desde logo, mas também artistas e técnicos, o mundo académico, a comunicação social, as indústrias culturais, as empresas, os ativistas, até aqueles que não têm filhos. Não se deve alienar ninguém. Aliás, este é já hoje um grande obstáculo no caminho dos direitos humanos: recusar o diálogo com quem pensa de maneira diferente.

 

Bruno Horta

 

Bruno Horta é jornalista desde 2003. Já publicou no Observador, na Time Out Lisboa, no Público, no Diário de Notícias, no Tal & Qual. Assinou uma biografia de António Variações e uma coletânea de textos intitulada “Aquele Lustro Queer” (2021). Licenciado em Jornalismo pela Escola Superior de Comunicação Social, dedica-se a temas de cultura e de direitos humanos.